sexta-feira, 13 de junho de 2008

Da engrenagem ao cosmo


Pela lógica, esse deveria ter sido o post de estréia do blog. E a razão é muito simples: é o principal livro da minha vida nos últimos dois anos e meio. Foi sobre ele que me debrucei esse tempo todo, buscando relações, estabelecendo caminhos e parâmetros que me levassem à dissertação de mestrado que defendi no começo de maio, na PUC–SP. (Quem tiver interesse e paciência, ela está disponível na biblioteca da Monte Alegre e logo nos arquivos virtuais da Capes com o título: “A borboleta azul na parede de vidro: o imaginário medieval em Nove, Novena, de Osman Lins”.)

Se não me atrevi antes a escrever uma resumida crítica de “Nove, novena” (São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 211 páginas) é porque não me via capaz de fazê-lo em poucas linhas. Mas tentarei. E para ser o mais objetiva possível, assumo o superlativo sem culpa: esse é um dos melhores livros que já li na vida, mesmo.

“Nove, novena” reúne nove narrativas curtas (o próprio autor renega a classificação de contos) que têm como núcleo de abordagem a reconstrução da ligação do homem moderno ao cosmo. Cabeçudo demais? Nem tanto. O livro está ambientado (foi escrito na primeira metade dos anos 1970 e lançado em 1975) num país que assimilava a expansão desenfreada das grandes cidades, o advento da produção em massa e a promoção da indústria cultural norte-americana. Nesse meio, o homem osmaniano parece espremido, em busca do seu próprio espaço.

É das angústias do ser moderno que trata os textos de Osman Lins. Desse homem, como explica Benjamin, dividido entre “a esperança de retorno às certezas desaparecidas e o medo do futuro impessoal e fragmentado”. Mais ou menos como eu me sinto e talvez você que me lê também: paralisado entre a saudade do que não existe e a esperança nebulosa pelo que está por vir.

A genialidade do autor (pernambucano!) está na forma com que constrói o texto, trazendo alegorias tão incríveis que a gente lê e se pergunta: por que mesmo não pensei nisso antes?

Numa das narrativas que mais gosto, chamada “Noivado”, um casal de velhos noivos trava o último diálogo antes de pôr fim a uma relação acomodada que perdura há 28 anos. Mendonça é um burocrata recém-aposentado que, dias antes de deixar a repartição, se depara com o primeiro problema “mais ou menos vivo” em 30 anos de carreira: uma invasão de insetos, que vêm não se sabe de onde e rompem a vidraça do prédio. Giselda é a velha que guarda o romantismo da juventude e a esperança de que o rompimento do noivado signifique, enfim, seu resgate.

Enquanto os dois personagens se contrastam em seus dilemas, os diálogos se distanciam até que um diante do outro sequer se enxergam. Enquanto Mendonça se inquieta com seu fracasso diante do mundo real e orgânico dos insetos, Giselda acredita testemunhar a transformação do noivo em máquina, como se o corpo, enfim, assumisse a forma de engrenagem – a mesma que o fez repetir gestos e palavras por três décadas de atividade medíocre.

Com uma construção alegórica riquíssima e extrapolando a linguagem verbal (as falas das personagens são identificadas por símbolos gráficos), Osman Lins “desconcretiza” o real. Tudo está desfeito e desconfigurado. É a linguagem analógica empenhada em oferecer conhecimento sensorial da realidade. O objetivo não é a verdade, mas sim o conhecimento de mais uma (entre as tantas possíveis) possibilidade do real.

p.s.: o empurrãozinho que faltava para eu escrever esse resuminho de “Noivado” me foi dado pela queridíssima Micheliny, que comentou no post anterior que escreve no momento um artigo sobre Osman Lins. Foi ela quem o apelidou, muito propriamente, de deus. Alguém duvida?

Recortes:
“8 Duas aranhas saem da boca de Mendonça, descem pelo ombro, saltam para o chão, um grilo põe-se a cantar. Mariposas giram em torno da lâmpada. Pela janela aberta entra zumbindo uma nuvem de mosquitos. Na veneziana fechada aparece uma lagarta, gafanhotos pousam no sofá e na moldura do espelho. Na face exterior da vidraça vejo um louva-a-deus olhando-nos. Três besouros enormes irrompem zumbidores. Formigas vermelhas passam por baixo da porta, seguem em fila cerrada na direção do meu quarto. Enorme borboleta azul adeja sobre nós. Sinto na perna esquerda o rastro de uma centopéia.” (pag. 168)

4 comentários:

eu lia disse...

apetitoso, hem?! deu vontade de ler!

Micheliny Verunschk disse...

Perfeito! Sabe que, lendo O Jogo da Amarelinha, do Córtazar, minha certeza de que Osman Lins é meu pastor e nada me faltará se fortalece?

beijos!

Ingracia Carmona disse...

Estou curiosíssima para conhecer.. Li fragmentos buscados na internet quando soube há meses de seu projeto.. Adorei "Osman Lins é meu pastor e nada me faltará"

Marta disse...

Oba! Então Lia e Fábia, depois me digam se estou exagerando, tá? Acho que não!
E Micheliny, não esquece de nos passar o link do artigo que você escreveu sobre ele, quando for publicado.
E nada nos fatará - Osman é pai!
Beijinhos,