quarta-feira, 4 de junho de 2008

Clarice pra alma

(Francisco Alves Editora, 1995: Rio de Janeiro.)


A morte me reaproximou de Clarice Lispector. Aliás, Clarice vez ou outra volta em mim. Gosto de reler seus livros em momentos-chave. Impossível relacionar esses momentos entre si porque são soltos: alegres, tristes, de apreensão, de tranqüilidade, de inspiração ou vazios.

Quando pensei que livro seria capaz de me preencher nesse momento absolutamente vazio, lembrei de "A maçã no escuro" (Francisco Alves Editora, 1995: Rio de Janeiro. 321 páginas). Pensei nele porque o via como uma desafiante releitura. A primeira vez que li, confesso, não cheguei a gostar. Foi em 2003, tinha acabado de voltar pro Brasil e estava numa onda “quero ler tudo da Clarice”. Esse livro me travou. Provavelmente pelo personagem masculino, Martim. Naquela época, Clarice era para mim essencialmente uma descobridora de almas femininas e não consegui aceitar muito bem aquele homem ali, em destaque. Mesmo assim, guardei muito respeito por esse livro e sua história. Das primeiras anotações ao ponto final, Clarice se ocupou dez anos em escrevê-lo - a primeira publicação foi em 1961.

Dessa vez, foi tudo diferente e até me arrisco a dizer que “A maçã no escuro” entrou na lista dos meus preferidos de Clarice, junto com “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”, “Paixão segundo GH” e “A bela e a fera”. Mais uma prova que livro tem hora, lugar e companhia, mesmo.

Em “A maçã no escuro”, Martim empreende uma viagem de redescoberta, tendo como ponto de partida uma fuga e como ponto de chegada, ele próprio. Parte de um estado de letargia (a construção da imagem dele em longa caminhada de olhos fechados é fascinante!) e segue pela recriação de si mesmo a partir do encontro com os elementos da natureza. Ele é um personagem masculino, é verdade, mas sua figura representa a gênese humana, reescrita a partir da busca do elevado nos sentimentos mais rasteiros, nos desejos menos nobres de todo e qualquer homem (aqui não enquanto gênero).

Seu encontro com três mulheres (Vitória, a poderosa e autoritária dona da fazenda onde ele trabalha duro em troca de hospedagem; Ermelinda, a viúva romântica e iludida com a presença do homem; e a mulata empregada da fazenda) incorpora a seus dias a tensão das relações humanas. Martim havia deixado para trás essas relações quando, imaginando ter matado a própria mulher, inicia sua fuga.

E assim o personagem segue um percurso de fuga que não idealiza o absoluto, por sabê-lo inexistente. No prefácio do livro, Lucia Helena usa uma imagem exemplar desse estado de equilíbrio instável de Martim: a de Sísifo, “que devia sempre reiniciar a subida do monte, empurrando sua pedra. Quando chegava ao topo, um deus o soprava novamente para baixo” (pág. 02). Como um Sísifo, Martim empurra sua pedra, mesmo consciente que o esforço não o levará à plenitude, e que o fim será sempre um começo.

Não há salvação. Caminhamos em círculos, se essa imagem for mais clara. Somos seres frágeis, limitados e precários – e é do equilíbrio desses três traços comuns a todos nós que consiste a salvação.

p.s.: sim, esse livro foi uma ótima companhia em Paraty!

Recortes:
“Então sentou-se numa pedra e muito teso ficou olhando. O olhar não esbarrou em nenhum obstáculo e errou num meio-dia intenso e tranqüilo. Nada o impedia de transformar a fuga numa grande viagem, e estava disposto a fruí-la. Olhava.” (pág. 24)

“Como um homem que alcança, ali estava ele exausto, sem interesse nem alegria. Estava envelhecido como se tudo o que lhe pudesse ser dado já viesse tarde demais.” (pág. 55)

Vitória era uma mulher tão poderosa como se um dia tivesse encontrado uma chave. Cuja porta, é verdade, havia anos se perdera. Mas, quando precisava, ela podia se pôr instantaneamente em contato com o velho poder. Já sem nomeá-lo, ela por dentro chamava de chave aquilo que sabia. Não se indagava mais o que tanto soubera; mas vivia disso.” (pág. 62)

E a coisa era de tal modo perfeita que até a perspectiva da distância se agregava àquela muito sem Deus. Pois quando o homem erguia os olhos – as árvores distantes eram tão altas, tão altas como uma beleza: o homem grunhia aprovando. Quanto mais estúpido, mais em face das coisas ele estava. Assim é que, aos poucos, a força de Martim foi se reconstituindo.” (pág. 78)

E um recorte que vale muito para mim:

“A dor, tão reconhecível, ficara. Mas para suportá-la fomos feitos.” (pag. 83)

Um comentário:

Unknown disse...

Preciso ler "A maçã no escuro"... Aliás, preciso ler tanta coisa...
Bjo!