segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Lágrimas de Eros

(Andy Warhol, Beijo, 1932)
(Man Ray, Lágrimas, 1932)

Sozinha em Madri num domingo frio e ensolarado, não podia haver programa mais perfeito que a exposição “Lágrimas de Eros”, no museu Thyssen-Bornemisza, que eu não conhecia. Com esse título, eu iria mesmo que fosse em Barajas. “Les Larmes d’Éros” é o último livro de Georges Bataille, lançado em 1961, e que muito debati durante o mestrado com meus colegas de classe (saudade disso!). Nesse livro, o autor francês levanta a poeira do clássico problema da íntima relação entre o prazer sexual e o instinto de morte. O gozo é a micro experiência da morte, diz Bataille a seu modo. “Tanto na morte como na consumação erótica regressamos, da descontinuidade da vida individual, à continuidade originária do Ser”, numa livre tradução do panfleto explicativo da mostra.
A exposição apresentava um ótimo apanhado, em pinturas, fotografias, esculturas e vídeos, da arte dedicada à divindade grega do amor. Nas primeiras salas estavam as várias faces da mulher fatal: Vênus, Eva (a origem de todo o pecado do mundo, segundo a leitura bíblica), a esfinge, a sereia. Já comecei me apaixonado pelo retrato de Man Ray, feito em 1932 (até trouxe uma reprodução em imã de geladeira), intitulado “Lágrimas”: dois olhos femininos cuidadosamente maquiados, com cinco lágrimas de vidro ou cristal postas simetricamente no rosto - o que faz daquele choro algo muito falso. Man Ray fez o retrato depois de levar um chute daqueles de sua amante Lee Miller. Sua resposta é irônica. Dizem que ele questiona a própria fotografia com essa ironia.
Claro, o tema religioso não faltaria na exposição, afinal para Bataille a identidade entre Eros (amor) e Tânatos (morte) faz sentido no contexto do sagrado. “O erotismo é objeto de um tabu, de uma proibição que ilumina o proibido ‘com uma luz ao mesmo tempo sinistra e divina: o ilumina, com uma palavra, com uma luz religiosa’”. Por isso no erotismo, assim como no sagrado, a proibição não existe sem a transgressão.
E chego então à sala com algumas interpretações da tentação de Santo Antonio, o eremita que retirado no deserto é assaltado por visões diabólicas de... uma mulher nua. Ele resiste e apenas olha de longe - daí alguns considerarem Santo Antonio o primeiro voyeur da história. Ali vi quadros incríveis de Paul Cézanne (de 1877), Jan Wellens de Cock (1520), Picasso (1970) e Antonio Saura (1963 e 1964) – desse último, uma colagem feita com fotos de pin ups nuas tiradas de revistas da época. Adorei!
Sigo pela sala dedicada a São Sebastião. Eu não sabia, mas aquela imagem do santo amarrado a uma árvore, nu e com o corpo atravessado por flechas, com uma expressão entre a agonia e o êxtase, se converteu, após o século 15 (antes ele era retratado de um jeito totalmente diferente) num ícone gay por excelência. Lembro de ter ouvido uma frase, provavelmente de um poeta do século 19 que não lembro o nome, que resume tudo: “Quem mais profundamente me fere, mais profundamente me ama”. A imagem de São Sebastião reflete gozo, não sofrimento, ou as duas coisas – o gozo no sofrimento, o prazer e a morte de Bataille.
Também estava nessa sala Andrômeda, a equivalente feminina de São Sebastião, que é oferecida em sacrifício a um monstro marinho. Amarrada a uma rocha no mar, ela é salva por Perseu que se apaixona pela imagem da mulher nua, imóvel, entregue. Perseu só nota que é uma mulher pelo balanço dos cabelos ao vento.
Ainda tinha a sala do beijo, com Andy Warhol (1963) e uma introdução que merece ser reproduzida: “A culminação amorosa do casal é a escravidão mútua. Os amantes lutam para superar seus limites individuais para se fundir em um só ser, mas essa função não se produzirá sem violência, sem a paixão canibal por devorar ao outro ou por vampirizá-lo.” É ou não é a melhor descrição do beijo?
Sai do museu com uma frase de Paul Gauguin, talhada em madeira, de 1901: “Soyez amoureuses et vous seres hereuses” (tá certo, gente?), algo como “se apaixone e serás feliz!”. Nada mais!
P.s.: Esse post é mais um da série ‘leiam e babem’. Infelizmente, a exposição acabou. Tive a sorte de ver no último dia. Quem sabe algum museu de São Paulo não se interessa em trazer pra cá.

3 comentários:

Caroline Castro disse...

“Quem mais profundamente me fere, mais profundamente me ama” - gente, é incrível como algumas frases aparecem nos momentos mais propícios.

deu muita vontade de conhecer essa exposição. bateu também vontade de ler o livro, só preciso ter disposição pra sair da delícia dos romances e dos meus livrinhos de jornalismo literário, hehe.

não gosto muito de deixar comentário em blogs, mas às vezes o texto me envolve e me força a isso. além do que lembrei q às vezes vc pensa em desencanar do blog pq acha que ninguém lê... entao o comentário é tb pra reforçar oq eu e outras pessoas já disseram: não faça isso, continue postando.

e a sua resenha do texto do veríssimo tá mto boa, mas seu comentário leve aqui no blog tá mais legal ainda!

bjo,

carol

Marta disse...

Que legal seu comentário, Carol! Anomou! Beijo, M

Marta disse...

Eu quis dizer "animou"!