É preciso vencer alguns preconceitos para experimentar a beleza de “A elegância do ouriço”, segundo romance da francesa Muriel Barbery, nascida em Bayeux, mas residente na Normandia (tradução de Rosa Freire d’Aguiar, Companhia das Letras, 2008). O primeiro preconceito a ser vencido, pelo menos de minha parte, é contra o estigma dos best sellers. Sei que estar entre os mais vendidos na França (esse livro liderou a lista de lá em 2006 e vendeu 850 mil exemplares) não é a mesma coisa de ser best seller nos Estados Unidos ou no Brasil – e ai vocês podem dizer: mas esse é mais um preconceito! É verdade, mas já me decepcionei tanto com o que a massa costuma achar ótimo que evito os best sellers, mesmo.
O segundo preconceito a se vencer é mais secreto, contra aquela íntima impaciência com os livros que demoram a pegar. O vocabulário espanhol tem a palavra certa: impaciência com os livros que não “enganchan”, não viciam logo de cara. Em alguns trechos, “A elegância do ouriço” parece dar voltas, alongar o caminho, o tornando mais sinuoso, e retardando a chegada. No entanto, um conselho: insistam, valerá a pena.
De modo geral, o enredo traz o dia a dia em um classudo edifício de Paris, onde uma vizinhança burguesa e pretensiosa é constantemente avaliada e alfinetada em dois diários escritos simultaneamente, por moradoras bem diferentes. Uma é a concierge de meia-idade, que lê Proust, ouve música clássica e divaga sobre conceitos de filosofia e de teoria literária. A outra é uma pré-adolescente infeliz, assustadoramente inteligente para sua idade e que planeja o próprio suicídio quando completar 13 anos, ou seja, dali a seis meses. As duas podiam perfeitamente ser mãe e filha, mas seus destinos só começam a se cruzar de fato com a chegada de um novo morador ao edifício, um milionário japonês de sorriso farto e muita sensibilidade.
Há várias questões em pauta no livro de Muriel, que além de escritora é professora de filosofia. O abismo social parisiense, que em muito lembra o antiquado sistema de castas; o papel da arte (e, mais precisamente, da literatura) enquanto sustentação dos desejos mais vitais do homem; e o caráter insuportável da lucidez são algumas. Mas, acima de todas essas discussões, está uma temática muito sedutora: “A elegância do ouriço” é, sobretudo, um livro sobre uma mulher.
Renée, ou a sra Michel, é a personagem forte da trama. Primeiro pela forma peculiar com que constrói sua fortaleza particular. Ela acredita que fingir ser uma concierge de formação cultural rasteira, como seria qualquer outra de Paris ou do mundo, garante a invisibilidade que lhe mantém protegida há 27 anos no mesmo posto de trabalho. Como um ouriço, Renée se protege crivada de espinhos e prefere passar-se por medíocre a ser desmascarada pela mente brilhante que é.
Pessoalmente, esse livro me levou ao encontro de emoções fortíssimas. Fez com que relembrasse os últimos momentos de vida do Marquinhos; me fez ver, mais uma vez, que o importante é o hoje e que trauma nenhum pode ser freio e que a vida, essa coisa que a gente dá tanto valor, é uma sucessão de dias, meses e anos. E que se a gente não fizer desse tempo algo prazeroso, nem vale a pena. Porque não existe gran finale. É agora ou nunca. A eternidade é efêmera e viver é buscar o sempre no nunca.
Sugestão: a trilha sonora desse livro, para mim, claro, é “Nicest thing”, de Kate Nash. Da letra, misturada ao livro, fiz um versinho:
“Tomara que eu tenha sido a última coisa na sua mente, quando você adormeceu.
Torço tanto para que tenha sido o meu rosto a última imagem na sua mente, congelada, eternizada... um sempre no nunca.” (MB)
p.s.: Mais uma vez, devo essa leitura de prazer à minha amiga Nina, que recebeu a indicação da mãe e repassou para mim. Bela dica, belo empréstimo!
Recortes:
“Fora o amor, a amizade e a beleza da Arte, não vejo muitas outras coisas capazes de alimentar a vida humana.” (pag.37)
“(...) Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte.
Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o movimento e seu desaparecimento?
Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem.” (pag. 293)
“Pela primeira vez na vida senti o significado da palavra nunca. Bem, é terrível. A gente pronuncia essa palavra cem vezes por dia, mas não sabe o que diz antes de ter sido confrontado com um verdadeiro ‘nunca mais’”. (pag.348)
O segundo preconceito a se vencer é mais secreto, contra aquela íntima impaciência com os livros que demoram a pegar. O vocabulário espanhol tem a palavra certa: impaciência com os livros que não “enganchan”, não viciam logo de cara. Em alguns trechos, “A elegância do ouriço” parece dar voltas, alongar o caminho, o tornando mais sinuoso, e retardando a chegada. No entanto, um conselho: insistam, valerá a pena.
De modo geral, o enredo traz o dia a dia em um classudo edifício de Paris, onde uma vizinhança burguesa e pretensiosa é constantemente avaliada e alfinetada em dois diários escritos simultaneamente, por moradoras bem diferentes. Uma é a concierge de meia-idade, que lê Proust, ouve música clássica e divaga sobre conceitos de filosofia e de teoria literária. A outra é uma pré-adolescente infeliz, assustadoramente inteligente para sua idade e que planeja o próprio suicídio quando completar 13 anos, ou seja, dali a seis meses. As duas podiam perfeitamente ser mãe e filha, mas seus destinos só começam a se cruzar de fato com a chegada de um novo morador ao edifício, um milionário japonês de sorriso farto e muita sensibilidade.
Há várias questões em pauta no livro de Muriel, que além de escritora é professora de filosofia. O abismo social parisiense, que em muito lembra o antiquado sistema de castas; o papel da arte (e, mais precisamente, da literatura) enquanto sustentação dos desejos mais vitais do homem; e o caráter insuportável da lucidez são algumas. Mas, acima de todas essas discussões, está uma temática muito sedutora: “A elegância do ouriço” é, sobretudo, um livro sobre uma mulher.
Renée, ou a sra Michel, é a personagem forte da trama. Primeiro pela forma peculiar com que constrói sua fortaleza particular. Ela acredita que fingir ser uma concierge de formação cultural rasteira, como seria qualquer outra de Paris ou do mundo, garante a invisibilidade que lhe mantém protegida há 27 anos no mesmo posto de trabalho. Como um ouriço, Renée se protege crivada de espinhos e prefere passar-se por medíocre a ser desmascarada pela mente brilhante que é.
Pessoalmente, esse livro me levou ao encontro de emoções fortíssimas. Fez com que relembrasse os últimos momentos de vida do Marquinhos; me fez ver, mais uma vez, que o importante é o hoje e que trauma nenhum pode ser freio e que a vida, essa coisa que a gente dá tanto valor, é uma sucessão de dias, meses e anos. E que se a gente não fizer desse tempo algo prazeroso, nem vale a pena. Porque não existe gran finale. É agora ou nunca. A eternidade é efêmera e viver é buscar o sempre no nunca.
Sugestão: a trilha sonora desse livro, para mim, claro, é “Nicest thing”, de Kate Nash. Da letra, misturada ao livro, fiz um versinho:
“Tomara que eu tenha sido a última coisa na sua mente, quando você adormeceu.
Torço tanto para que tenha sido o meu rosto a última imagem na sua mente, congelada, eternizada... um sempre no nunca.” (MB)
p.s.: Mais uma vez, devo essa leitura de prazer à minha amiga Nina, que recebeu a indicação da mãe e repassou para mim. Bela dica, belo empréstimo!
Recortes:
“Fora o amor, a amizade e a beleza da Arte, não vejo muitas outras coisas capazes de alimentar a vida humana.” (pag.37)
“(...) Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte.
Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o movimento e seu desaparecimento?
Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem.” (pag. 293)
“Pela primeira vez na vida senti o significado da palavra nunca. Bem, é terrível. A gente pronuncia essa palavra cem vezes por dia, mas não sabe o que diz antes de ter sido confrontado com um verdadeiro ‘nunca mais’”. (pag.348)