quarta-feira, 23 de julho de 2008

O sempre no nunca


É preciso vencer alguns preconceitos para experimentar a beleza de “A elegância do ouriço”, segundo romance da francesa Muriel Barbery, nascida em Bayeux, mas residente na Normandia (tradução de Rosa Freire d’Aguiar, Companhia das Letras, 2008). O primeiro preconceito a ser vencido, pelo menos de minha parte, é contra o estigma dos best sellers. Sei que estar entre os mais vendidos na França (esse livro liderou a lista de lá em 2006 e vendeu 850 mil exemplares) não é a mesma coisa de ser best seller nos Estados Unidos ou no Brasil – e ai vocês podem dizer: mas esse é mais um preconceito! É verdade, mas já me decepcionei tanto com o que a massa costuma achar ótimo que evito os best sellers, mesmo.

O segundo preconceito a se vencer é mais secreto, contra aquela íntima impaciência com os livros que demoram a pegar. O vocabulário espanhol tem a palavra certa: impaciência com os livros que não “enganchan”, não viciam logo de cara. Em alguns trechos, “A elegância do ouriço” parece dar voltas, alongar o caminho, o tornando mais sinuoso, e retardando a chegada. No entanto, um conselho: insistam, valerá a pena.

De modo geral, o enredo traz o dia a dia em um classudo edifício de Paris, onde uma vizinhança burguesa e pretensiosa é constantemente avaliada e alfinetada em dois diários escritos simultaneamente, por moradoras bem diferentes. Uma é a concierge de meia-idade, que lê Proust, ouve música clássica e divaga sobre conceitos de filosofia e de teoria literária. A outra é uma pré-adolescente infeliz, assustadoramente inteligente para sua idade e que planeja o próprio suicídio quando completar 13 anos, ou seja, dali a seis meses. As duas podiam perfeitamente ser mãe e filha, mas seus destinos só começam a se cruzar de fato com a chegada de um novo morador ao edifício, um milionário japonês de sorriso farto e muita sensibilidade.

Há várias questões em pauta no livro de Muriel, que além de escritora é professora de filosofia. O abismo social parisiense, que em muito lembra o antiquado sistema de castas; o papel da arte (e, mais precisamente, da literatura) enquanto sustentação dos desejos mais vitais do homem; e o caráter insuportável da lucidez são algumas. Mas, acima de todas essas discussões, está uma temática muito sedutora: “A elegância do ouriço” é, sobretudo, um livro sobre uma mulher.

Renée, ou a sra Michel, é a personagem forte da trama. Primeiro pela forma peculiar com que constrói sua fortaleza particular. Ela acredita que fingir ser uma concierge de formação cultural rasteira, como seria qualquer outra de Paris ou do mundo, garante a invisibilidade que lhe mantém protegida há 27 anos no mesmo posto de trabalho. Como um ouriço, Renée se protege crivada de espinhos e prefere passar-se por medíocre a ser desmascarada pela mente brilhante que é.

Pessoalmente, esse livro me levou ao encontro de emoções fortíssimas. Fez com que relembrasse os últimos momentos de vida do Marquinhos; me fez ver, mais uma vez, que o importante é o hoje e que trauma nenhum pode ser freio e que a vida, essa coisa que a gente dá tanto valor, é uma sucessão de dias, meses e anos. E que se a gente não fizer desse tempo algo prazeroso, nem vale a pena. Porque não existe gran finale. É agora ou nunca. A eternidade é efêmera e viver é buscar o sempre no nunca.

Sugestão: a trilha sonora desse livro, para mim, claro, é “Nicest thing”, de Kate Nash. Da letra, misturada ao livro, fiz um versinho:
“Tomara que eu tenha sido a última coisa na sua mente, quando você adormeceu.
Torço tanto para que tenha sido o meu rosto a última imagem na sua mente, congelada, eternizada... um sempre no nunca.” (MB)

p.s.: Mais uma vez, devo essa leitura de prazer à minha amiga Nina, que recebeu a indicação da mãe e repassou para mim. Bela dica, belo empréstimo!

Recortes:
“Fora o amor, a amizade e a beleza da Arte, não vejo muitas outras coisas capazes de alimentar a vida humana.” (pag.37)

“(...) Porque o que é bonito é o que captamos enquanto passa. É a configuração efêmera das coisas no momento em que vemos ao mesmo tempo a beleza e a morte.
Ai, ai, ai, pensei, será que isso quer dizer que é assim que temos de viver a vida? Sempre em equilíbrio entre a beleza e a morte, o movimento e seu desaparecimento?
Estar vivo talvez seja isto: espreitar os instantes que morrem.” (pag. 293)

“Pela primeira vez na vida senti o significado da palavra nunca. Bem, é terrível. A gente pronuncia essa palavra cem vezes por dia, mas não sabe o que diz antes de ter sido confrontado com um verdadeiro ‘nunca mais’”. (pag.348)

A música

Nicest Thing
(Kate Nash)

Dá para ouvir no:
http://letras.terra.com.br/kate-nash/988784/

All I know is that you're so nice
You're the nicest thing I've seen
I wish that we could give it a go
See if we could be something

I wish I was your favorite girl
I wish you thought I was the reason you are in the world
I wish my smile was your favorite kind of smile
I wish the way that I dress was your favourite kind of style
I wish you couldn't figure me out
But you'd always wanna know what I was about

I wish you'd hold my hand when I was upset
I wish you'd never forget the look on my face when we first met
I wish you had a favourite beauty spot that you loved secretly
'Cos it was on a hidden bit that nobody else could see

Basically, I wish that you loved me
I wish that you needed me
I wish that you knew when I said two sugars, actually I meant three
I wish that without me your heart would break
I wish that without me you'd be spending the rest of your nights awake
I wish that without me you couldn't eat
I wish I was the last thing on your mind before you went to sleep

All I know is that you're the nicest thing I've ever seen
And I wish we could see if we could be something
And I wish we could see if we could be something

segunda-feira, 21 de julho de 2008

O fim de Nathan Zuckerman


(As várias faces de Nathan, fotografadas numa livraria em Amsterdam)

Nesta semana no UOL, resenha do ótimo “Fantasma sai de cena”, de Philip Roth. Gostei de ler esse livro por alguns motivos em especial. Primeiro porque acho mesmo que Roth é um grande escritor de nosso tempo. Segundo porque, tudo indica, essa é a despedida do alter ego Nathan Zuckerman, um personagem tão interessante quanto curioso. E, terceiro, porque Roth era um dos autores preferidos do Marquinhos. Acho que ele leu todos os livros do Nathan traduzidos ao português. Nas nossas férias, em Amsterdam, “Exit ghost” já estava à venda. Tomamos um susto com a idéia de que era o fim de Nathan, mas não compramos o livro. A mala já estava pesada demais e, sei lá, não quisemos comprar. Ele não leu, mas eu li por ele.
Go, go, go:
http://diversao.uol.com.br/ultnot/livros/resenhas/2008/07/20/ult5668u44.jhtm

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Velhice interrompida


Por muito tempo, achei que conseguia reconhecer os que viverão muito dos que morrerão cedo. Pensava: os primeiros não têm pressa, vivem com uma tranqüilidade embutida nos pequenos gestos, passam paz, parecem entender que tudo ter seu tempo não significa que o tempo é sempre agora. Já os de morte marcada têm pressa, correm, fogem, tropeçam, perdem o fôlego. São bons de serem observados, têm a intensidade inscrita no olhar, farejam o caminho seguro tão fácil que quase nunca erram a direção. Não têm tempo para voltar atrás.

Como bom geminiano, Marquinhos não era inteiramente um, nem outro. Mas se eu tivesse que escolher quem seria ele, tendo a enxergá-lo no primeiro. Ele era intenso, sim, mas não tropeçava nos próprios passos. Gostava de ficar quieto, pensando. Era capaz de passar horas do seu fim de semana deitado no sofá, pensando. Ou, como gostava de dizer, fazendo nada. Aliás, não fazer nada era algo que ele exercitava com muita disciplina. Ele precisava, depois de uma semana de muito trabalho mental, não fazer nada a sério. Eu não faço nada lendo, vendo TV, brincando com os cachorros, caminhando no parque – é o máximo que consigo de nada em minha vida. Com ele era diferente.

O Marquinhos era muito objetivo, incrivelmente racional, embora, em seus últimos meses de vida, ele me confidenciou que começava a acreditar que, de fato, o lado emocional é mais forte do que o racional no ser humano. Isso foi uma quebra de paradigma, motivada e muito pelas aulas e leituras sobre psicologia social, do MBA que estava fazendo. Mas, enfim, mesmo tendendo um pouco mais ao emocional, ele continuava sendo um ser racional. Não perdia tempo com lamúrias, focava no que realmente lhe interessava e tinha um poder incrível de abstrair. Eu, pisciana com ascendente em Peixes, não conseguia acompanhá-lo.

Ele tinha pressa, sim, e fez tudo muito cedo na vida. Quando ainda era estagiário fez uma matéria bombástica que lhe rendeu seguidas ameaças de morte e uma passagem só de ida para bem longe do Recife. Para nunca mais voltar. Com 17 anos, escrevia cartas de amor em que dizia, sem nenhum pudor de juventude, que eu era a mulher da vida dele. Assim o foi. Mas, ao mesmo tempo, era um homem que parecia dispor de todo tempo do mundo. Sempre abria espaço para ouvir quem quer que fosse. E achava mesmo que podia aprender com todo mundo, do chefe turrão ao taxista que se abria como um velho amigo, talvez por reconhecer nele alguém que sabia das coisas.

Eu via o Marquinhos velho, conseguia enxergá-lo aos 70 anos, com os bolsos da calça cheios de balinhas (como bem descreveu um dia o Michel) e comprimidos para dor de cabeça, cabelos cinza, talvez uma bengala fazendo par com chapéu, não por necessidade, mas por charme. Eu via o Marquinhos aposentado, ganhando para não fazer nada, escrevendo livros e cercado de cachorros (gatos, não!). Eu via o Marquinhos enrolando um cigarro de palha aos 70 e poucos, fazendo pouco caso para as recomendações médicas e se deliciando com a gordura da picanha, assada por ele mesmo no forno a lenha. Eu podia vê-lo em uma de suas intermináveis festas, com nossos amigos, alguns grisalhos, muitos carecas, música eletrônica alta na vitrola, e nossos filhos resmungando que aquilo era música de velho. Era tão nítida a imagem dele velhinho, brigão, cheio de opinião, sempre disposto a mudar o pensamento do outro e tão seguro do seu próprio.

Quem diria, não vai ser assim.
Nesta sexta, são três meses que essa história mudou de rumo.


Ócio
(Por Marcos Gusmão)

Se faço, nada termino
Se começo, descanso
Se sigo, descompasso
Um passo, destino.

Sol, suspiro, resisto
Se me entrego, faleço
Respiro, respiro
Ouço, esqueço...

Não me aborreço
Se sigo, persigo
Me inquieto, insisto
Um passo, desatino.

Descanso, faleço
Termino suspenso.
Se vôo, imagino
Se fico, tropeço.

Miro disforme, d’ouro ébrio,
Enquanto nada me acomoda na noite.

Aqui, suspiro, entrego,
enquanto de novo
o sol salta sobre a casa.

Bebo, sacio,
Entorpeço.
Vinho, outra taça.
Um cão dorme tranqüilo.

Se sigo, reviro entorno,
Seco festejo, me acomodo
na segunda-feira.

Cortejo, então, um céu sem nuvens
Balbucio qualquer palavra
Numa rua que me despreza.

Em quatro paredes sufoco
O dia que se finda numa vida breve, conforto.

Descubro, a pedra se faz ao caminhar.
Ao sair da toca, incito a besta.
Não corro, confio.

O que fazem ali os animais?
Brincam ou pelejam,
enquanto mecânico termino?

Da casa, às paredes lanço meu olhar mecânico.
Descrente, acalma.

Do interior, música
Marcha, melancolia
Um vento, gemido num sonho.

Da vida, o sábado
Quando meu corpo despreza
A rua que é só rua.

Dois cães adormecem alimentados
Sempre casa, cães e sábados.

(escrito num sábado entre finais de fevereiro e meados de março de 2008)

terça-feira, 8 de julho de 2008

Um filme, um livro



Quem como eu amou assistir “Eu, você e todos nós”, filme de 2005 da norte-americana Miranda July (disponível em DVD), vai amar mais ainda ler “É claro que você sabe do que estou falando” (editora Agir). O filme é tão simples e tão bom, como o livro. Enfim, é tão rara essa chance de continuar um filme num livro, ou um livro num filme (como preferirem) que não para deixar essa escapar. Resenha do livro em:


sábado, 5 de julho de 2008

One day at a time

(Benicio Del Toro e Halle Barry em cena de "Coisas que perdemos pelo caminho")


O título me prendeu: “Coisas que perdemos pelo caminho”, filme dirigido por Susanne Bier, com Halle Barry e Benicio Del Toro no elenco. Entrou na cestinha de DVDs do final de semana sem que eu precisasse ler a resenha.

No filme, a personagem de Halle Berry perde o marido, numa morte trágica e repentina. O personagem de Benicio era o melhor amigo do marido morto e vive ele próprio uma vida de perdas, desde que trocou a carreira de advogado pela sobrevida de um viciado em heroína. É do encontro dos dois, e de como cada um dá suporte à recuperação do outro, que trata o filme.

Corajosa essa relação entre o recomeço de um viciado que luta contra seu particular impulso à autodestruição e o recomeço de uma mulher que perdeu o homem de sua vida e se enxerga absolutamente sozinha, ao lado dos dois filhos pequenos. Tive medo de achar forçado demais, e seria forçado demais se não fosse a forma delicada em que esse vínculo foi estabelecido.

De fato, há semelhanças. São dois personagens que perderam, muito, de seus eus. No começo do filme, nenhum dos dois acredita possível esse recomeço. Ela tenta preencher os espaços vazios como pode, ao invés de redimensioná-los. Ele custa a acreditar que é capaz de mudar o rumo e age como se cada dia longe da droga fosse mais um dia antes da próxima recaída. Típico comportamento autodestrutivo. No meio dos dois, a delicadeza infantil diante da tragédia – inocente e sem rodeios.

Ultimamente, não por acaso, perdas da vida rondam meu pensamento. Lembro da minha primeira decepção amorosa (ou, ao menos, o que uma garota de 14 anos chama de amorosa); da primeira amizade partida; da primeira pessoa que desisti; do primeiro amigo que morreu; da primeira vez que duvidei da sinceridade de alguém. Perder é estranho. Marca, fere, machuca. A gente não esquece. Pode até esquecer o que ganhou, mas dificilmente apaga o que perdeu.

E aqui está a dúvida que depois de assistir esse filme persiste: esses momentos marcam por que neles perdemos um pedaço ou, ao contrário, por que ganhamos algo?

p.s.: Claro, tem também as perdas materiais que, no filme, são lembradas com uma carga enorme de clichê, com a velha história do incêndio na garagem (o título original do filme é “Things we lost in the fire”). As minhas perdas materiais são incontáveis. Relógio, óculos, bolsas, sapatos, perco tudo, o tempo inteiro. Uma malha azul que sumiu na mesma época que sentimos falta de uma malha também azul do Marquinhos. Sumiram as duas, para sempre. Mas também dou muita coisa. Tanto que nunca sei, quando sinto falto de algo, se perdi ou dei. São objetos e eles voltam, sempre voltam.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Ausência




“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.”
Carlos Drummond de Andrade

E um dia assim será para mim... Por enquanto, ainda é falta e dói.

P.S.: recebi ontem esse Drummond do meu amigo amado Humberto, que está de parabéns pelo sucesso do seu "O santo sujo, a vida de Jaime Ovalle" (Cosac Naify), que será lançado nesta quinta, na Flip. Se não fosse meu barrigão, encararia a serra só para vê-lo brilhar! Parabéns, querido, você merece esse e outros aplausos!