quinta-feira, 17 de julho de 2008
Velhice interrompida
Por muito tempo, achei que conseguia reconhecer os que viverão muito dos que morrerão cedo. Pensava: os primeiros não têm pressa, vivem com uma tranqüilidade embutida nos pequenos gestos, passam paz, parecem entender que tudo ter seu tempo não significa que o tempo é sempre agora. Já os de morte marcada têm pressa, correm, fogem, tropeçam, perdem o fôlego. São bons de serem observados, têm a intensidade inscrita no olhar, farejam o caminho seguro tão fácil que quase nunca erram a direção. Não têm tempo para voltar atrás.
Como bom geminiano, Marquinhos não era inteiramente um, nem outro. Mas se eu tivesse que escolher quem seria ele, tendo a enxergá-lo no primeiro. Ele era intenso, sim, mas não tropeçava nos próprios passos. Gostava de ficar quieto, pensando. Era capaz de passar horas do seu fim de semana deitado no sofá, pensando. Ou, como gostava de dizer, fazendo nada. Aliás, não fazer nada era algo que ele exercitava com muita disciplina. Ele precisava, depois de uma semana de muito trabalho mental, não fazer nada a sério. Eu não faço nada lendo, vendo TV, brincando com os cachorros, caminhando no parque – é o máximo que consigo de nada em minha vida. Com ele era diferente.
O Marquinhos era muito objetivo, incrivelmente racional, embora, em seus últimos meses de vida, ele me confidenciou que começava a acreditar que, de fato, o lado emocional é mais forte do que o racional no ser humano. Isso foi uma quebra de paradigma, motivada e muito pelas aulas e leituras sobre psicologia social, do MBA que estava fazendo. Mas, enfim, mesmo tendendo um pouco mais ao emocional, ele continuava sendo um ser racional. Não perdia tempo com lamúrias, focava no que realmente lhe interessava e tinha um poder incrível de abstrair. Eu, pisciana com ascendente em Peixes, não conseguia acompanhá-lo.
Ele tinha pressa, sim, e fez tudo muito cedo na vida. Quando ainda era estagiário fez uma matéria bombástica que lhe rendeu seguidas ameaças de morte e uma passagem só de ida para bem longe do Recife. Para nunca mais voltar. Com 17 anos, escrevia cartas de amor em que dizia, sem nenhum pudor de juventude, que eu era a mulher da vida dele. Assim o foi. Mas, ao mesmo tempo, era um homem que parecia dispor de todo tempo do mundo. Sempre abria espaço para ouvir quem quer que fosse. E achava mesmo que podia aprender com todo mundo, do chefe turrão ao taxista que se abria como um velho amigo, talvez por reconhecer nele alguém que sabia das coisas.
Eu via o Marquinhos velho, conseguia enxergá-lo aos 70 anos, com os bolsos da calça cheios de balinhas (como bem descreveu um dia o Michel) e comprimidos para dor de cabeça, cabelos cinza, talvez uma bengala fazendo par com chapéu, não por necessidade, mas por charme. Eu via o Marquinhos aposentado, ganhando para não fazer nada, escrevendo livros e cercado de cachorros (gatos, não!). Eu via o Marquinhos enrolando um cigarro de palha aos 70 e poucos, fazendo pouco caso para as recomendações médicas e se deliciando com a gordura da picanha, assada por ele mesmo no forno a lenha. Eu podia vê-lo em uma de suas intermináveis festas, com nossos amigos, alguns grisalhos, muitos carecas, música eletrônica alta na vitrola, e nossos filhos resmungando que aquilo era música de velho. Era tão nítida a imagem dele velhinho, brigão, cheio de opinião, sempre disposto a mudar o pensamento do outro e tão seguro do seu próprio.
Quem diria, não vai ser assim.
Nesta sexta, são três meses que essa história mudou de rumo.
Ócio
(Por Marcos Gusmão)
Se faço, nada termino
Se começo, descanso
Se sigo, descompasso
Um passo, destino.
Sol, suspiro, resisto
Se me entrego, faleço
Respiro, respiro
Ouço, esqueço...
Não me aborreço
Se sigo, persigo
Me inquieto, insisto
Um passo, desatino.
Descanso, faleço
Termino suspenso.
Se vôo, imagino
Se fico, tropeço.
Miro disforme, d’ouro ébrio,
Enquanto nada me acomoda na noite.
Aqui, suspiro, entrego,
enquanto de novo
o sol salta sobre a casa.
Bebo, sacio,
Entorpeço.
Vinho, outra taça.
Um cão dorme tranqüilo.
Se sigo, reviro entorno,
Seco festejo, me acomodo
na segunda-feira.
Cortejo, então, um céu sem nuvens
Balbucio qualquer palavra
Numa rua que me despreza.
Em quatro paredes sufoco
O dia que se finda numa vida breve, conforto.
Descubro, a pedra se faz ao caminhar.
Ao sair da toca, incito a besta.
Não corro, confio.
O que fazem ali os animais?
Brincam ou pelejam,
enquanto mecânico termino?
Da casa, às paredes lanço meu olhar mecânico.
Descrente, acalma.
Do interior, música
Marcha, melancolia
Um vento, gemido num sonho.
Da vida, o sábado
Quando meu corpo despreza
A rua que é só rua.
Dois cães adormecem alimentados
Sempre casa, cães e sábados.
(escrito num sábado entre finais de fevereiro e meados de março de 2008)
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8 comentários:
Eita, Martinha, que coisa bonita. A sua "imagem" e as palavras dele. Pra mim é assim: quanto mais a ausência se concretiza, mais presente a "presença" do Gusma fica. Um grande beijo, querida. Ju
Nem tenho palavras, Martinha!
bj!
Gusmão era senhor de seu tempo, talvez por isso nunca tenha demonstrado pressa para nada. Quanta sabedoria...
martinha, querida... é como ju diz, como o gusma ainda tá aqui. e sempre vai estar. muitas saudades, amiga. de vocês dois. um beijo grande, dani.
Bonito demais Marcos poeta.. beijos..
Obrigada, meninas. Aliás, sabem que eu li esse texto do Marquinhos imaginando como ficaria legal se virasse música. Quem sabe algum músico se interessa...
E, sobre as palavras da Aline, é isso. Senhor do seu tempo! Beijo,
Pois é, eu também tinha essa sensação dele. Obrigada por compartilhar, martinha. muito bonito. beijos
Poxa, me deu uma vontade de chorar louca !
Muito sensível !
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