Quem como eu amou assistir “Eu, você e todos nós”, filme de 2005 da norte-americana Miranda July (disponível em DVD), vai amar mais ainda ler “É claro que você sabe do que estou falando” (editora Agir). O filme é tão simples e tão bom, como o livro. Enfim, é tão rara essa chance de continuar um filme num livro, ou um livro num filme (como preferirem) que não para deixar essa escapar. Resenha do livro em:
terça-feira, 8 de julho de 2008
sábado, 5 de julho de 2008
One day at a time

O título me prendeu: “Coisas que perdemos pelo caminho”, filme dirigido por Susanne Bier, com Halle Barry e Benicio Del Toro no elenco. Entrou na cestinha de DVDs do final de semana sem que eu precisasse ler a resenha.
No filme, a personagem de Halle Berry perde o marido, numa morte trágica e repentina. O personagem de Benicio era o melhor amigo do marido morto e vive ele próprio uma vida de perdas, desde que trocou a carreira de advogado pela sobrevida de um viciado em heroína. É do encontro dos dois, e de como cada um dá suporte à recuperação do outro, que trata o filme.
Corajosa essa relação entre o recomeço de um viciado que luta contra seu particular impulso à autodestruição e o recomeço de uma mulher que perdeu o homem de sua vida e se enxerga absolutamente sozinha, ao lado dos dois filhos pequenos. Tive medo de achar forçado demais, e seria forçado demais se não fosse a forma delicada em que esse vínculo foi estabelecido.
De fato, há semelhanças. São dois personagens que perderam, muito, de seus eus. No começo do filme, nenhum dos dois acredita possível esse recomeço. Ela tenta preencher os espaços vazios como pode, ao invés de redimensioná-los. Ele custa a acreditar que é capaz de mudar o rumo e age como se cada dia longe da droga fosse mais um dia antes da próxima recaída. Típico comportamento autodestrutivo. No meio dos dois, a delicadeza infantil diante da tragédia – inocente e sem rodeios.
Ultimamente, não por acaso, perdas da vida rondam meu pensamento. Lembro da minha primeira decepção amorosa (ou, ao menos, o que uma garota de 14 anos chama de amorosa); da primeira amizade partida; da primeira pessoa que desisti; do primeiro amigo que morreu; da primeira vez que duvidei da sinceridade de alguém. Perder é estranho. Marca, fere, machuca. A gente não esquece. Pode até esquecer o que ganhou, mas dificilmente apaga o que perdeu.
E aqui está a dúvida que depois de assistir esse filme persiste: esses momentos marcam por que neles perdemos um pedaço ou, ao contrário, por que ganhamos algo?
p.s.: Claro, tem também as perdas materiais que, no filme, são lembradas com uma carga enorme de clichê, com a velha história do incêndio na garagem (o título original do filme é “Things we lost in the fire”). As minhas perdas materiais são incontáveis. Relógio, óculos, bolsas, sapatos, perco tudo, o tempo inteiro. Uma malha azul que sumiu na mesma época que sentimos falta de uma malha também azul do Marquinhos. Sumiram as duas, para sempre. Mas também dou muita coisa. Tanto que nunca sei, quando sinto falto de algo, se perdi ou dei. São objetos e eles voltam, sempre voltam.
No filme, a personagem de Halle Berry perde o marido, numa morte trágica e repentina. O personagem de Benicio era o melhor amigo do marido morto e vive ele próprio uma vida de perdas, desde que trocou a carreira de advogado pela sobrevida de um viciado em heroína. É do encontro dos dois, e de como cada um dá suporte à recuperação do outro, que trata o filme.
Corajosa essa relação entre o recomeço de um viciado que luta contra seu particular impulso à autodestruição e o recomeço de uma mulher que perdeu o homem de sua vida e se enxerga absolutamente sozinha, ao lado dos dois filhos pequenos. Tive medo de achar forçado demais, e seria forçado demais se não fosse a forma delicada em que esse vínculo foi estabelecido.
De fato, há semelhanças. São dois personagens que perderam, muito, de seus eus. No começo do filme, nenhum dos dois acredita possível esse recomeço. Ela tenta preencher os espaços vazios como pode, ao invés de redimensioná-los. Ele custa a acreditar que é capaz de mudar o rumo e age como se cada dia longe da droga fosse mais um dia antes da próxima recaída. Típico comportamento autodestrutivo. No meio dos dois, a delicadeza infantil diante da tragédia – inocente e sem rodeios.
Ultimamente, não por acaso, perdas da vida rondam meu pensamento. Lembro da minha primeira decepção amorosa (ou, ao menos, o que uma garota de 14 anos chama de amorosa); da primeira amizade partida; da primeira pessoa que desisti; do primeiro amigo que morreu; da primeira vez que duvidei da sinceridade de alguém. Perder é estranho. Marca, fere, machuca. A gente não esquece. Pode até esquecer o que ganhou, mas dificilmente apaga o que perdeu.
E aqui está a dúvida que depois de assistir esse filme persiste: esses momentos marcam por que neles perdemos um pedaço ou, ao contrário, por que ganhamos algo?
p.s.: Claro, tem também as perdas materiais que, no filme, são lembradas com uma carga enorme de clichê, com a velha história do incêndio na garagem (o título original do filme é “Things we lost in the fire”). As minhas perdas materiais são incontáveis. Relógio, óculos, bolsas, sapatos, perco tudo, o tempo inteiro. Uma malha azul que sumiu na mesma época que sentimos falta de uma malha também azul do Marquinhos. Sumiram as duas, para sempre. Mas também dou muita coisa. Tanto que nunca sei, quando sinto falto de algo, se perdi ou dei. São objetos e eles voltam, sempre voltam.
terça-feira, 1 de julho de 2008
Ausência
“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.”
Carlos Drummond de Andrade
E um dia assim será para mim... Por enquanto, ainda é falta e dói.
P.S.: recebi ontem esse Drummond do meu amigo amado Humberto, que está de parabéns pelo sucesso do seu "O santo sujo, a vida de Jaime Ovalle" (Cosac Naify), que será lançado nesta quinta, na Flip. Se não fosse meu barrigão, encararia a serra só para vê-lo brilhar! Parabéns, querido, você merece esse e outros aplausos!
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.”
Carlos Drummond de Andrade
E um dia assim será para mim... Por enquanto, ainda é falta e dói.
P.S.: recebi ontem esse Drummond do meu amigo amado Humberto, que está de parabéns pelo sucesso do seu "O santo sujo, a vida de Jaime Ovalle" (Cosac Naify), que será lançado nesta quinta, na Flip. Se não fosse meu barrigão, encararia a serra só para vê-lo brilhar! Parabéns, querido, você merece esse e outros aplausos!
sexta-feira, 27 de junho de 2008
Guimarães para os sentidos

(imagem original: www.sescsp.org.br/sesc/controle/dynimages)
Post curtinho, mas imprescindível. Hoje, Guimarães Rosa completaria 100 anos. E eu sou completamente encantada por seu legado. Acho mesmo que de sua pena saíram alguns dos textos mais incríveis da literatura universal. O que Guimarães Rosa conseguiu fazer, em termos de performance com a palavra, não conheço que tenha conseguido melhor, muito menos igual. E como esse é um blog de dicas de leitura, indico um conto específico: “Meu tio o Iauaretê”, publicado na revista Senhor em março de 1961 e facilmente localizável na internet. Talvez você tenha tido a sorte (eu não tive) de assistir a performance desse texto, feita pelo inesquecível Paulo Autran, se não me engano em um dos teatros do Sesc em São Paulo.
O texto apresenta um narrador que é um profundo conhecedor dos hábitos das onças, e os descreve com tantos detalhes capaz de despertar no leitor sentidos que vão além da audição e da visão. Sim, lendo sentimos o cheiro do sangue, o frio na espinha comum a quem pressente o perigo. É pura magia. E ainda tem o efeito álcool, que contribui na perda dos sentidos lógicos do narrador, até o desfecho mais que singular, surpreendente, como um ataque mortal do bicho-homem. Enfim, vale a leitura. Mas nem adianta ler correndo, não. Esse é para ler com calma, em silêncio, sentindo o bafo do bicho.
Bom, é esse o meu Guimarães preferido do momento. E o seu?
p.s.: dedico esse post a Gisele e Sandro, colegas de mestrado que muito me ensinaram de Guimarães. Saudades de nossos papos sobre literatura no café da PUC!
segunda-feira, 23 de junho de 2008
Agora também no UOL
Gente, novidade das boas.
A partir dessa semana, passo a assinar uma resenha quinzenal no UOL. Serão só lançamentos e estou inteiramente aberta a sugestões, claro. Queria, inclusive, agradecer a Patrícia Decia por ter indicado meu nome. Serei eternamente grata quando virar cliente gold da Livraria Cultura!
A resenha de estréia é de “Mundo Animal e Outros Contos", de Antonio Di Benedetto. Esse livro tem uma história legal. É que comprei na primeira manhã pós-mestrado finalizado. Corri na Livraria da Vila e me dei ao luxo de me deter na estante de lançamentos (como não fazia há dois anos e meio). Claro, o título me chamou (ainda mais com a cabeça osmaniana que estava) e não me arrependi. Leiam mais no:
http://diversao.uol.com.br/ultnot/livros/resenhas/2008/06/22/ult5668u27.jhtm
A partir dessa semana, passo a assinar uma resenha quinzenal no UOL. Serão só lançamentos e estou inteiramente aberta a sugestões, claro. Queria, inclusive, agradecer a Patrícia Decia por ter indicado meu nome. Serei eternamente grata quando virar cliente gold da Livraria Cultura!
A resenha de estréia é de “Mundo Animal e Outros Contos", de Antonio Di Benedetto. Esse livro tem uma história legal. É que comprei na primeira manhã pós-mestrado finalizado. Corri na Livraria da Vila e me dei ao luxo de me deter na estante de lançamentos (como não fazia há dois anos e meio). Claro, o título me chamou (ainda mais com a cabeça osmaniana que estava) e não me arrependi. Leiam mais no:
http://diversao.uol.com.br/ultnot/livros/resenhas/2008/06/22/ult5668u27.jhtm
sábado, 21 de junho de 2008
Não é melhor nunca que tarde?

Ganhar presente é bom. Agora, ganhar um presente que nos emociona, que é a nossa cara e que nos faz derramar uma lágrima doce a cada virada de página, é melhor que bom. É como se aquela pessoa dissesse, em palavras não ditas, “eu conheço você melhor que imagina e posso perfeitamente tocar seu coração!” Foi assim que me senti quando ganhei, coisa de duas semanas atrás, a linda nova edição de “Livro das Perguntas”, de Pablo Neruda (São Paulo: Cosac Naify, 2007). Que edição irrepreensível! Aliás, a Cosac Naify ganhou definitivamente minha admiração. Como comentei dia desses com amigos, pode até ser que esteja redondamente enganada, mas a impressão que dá é que lá se trabalha sem aquele cifrão mágico como ponto de partida e de chegada. Melhor de tudo é que, ao que parece, anda tudo bem com as contas da editora! Sinal que quem compra livro reconhece, sim, um trabalho de qualidade a quilômetros!
Enfim, voltando ao presente, “Livro das Perguntas” foi um dos primeiros lançamentos póstumos do poeta chileno, escrito em seu último ano de vida e publicado pela primeira vez em 1974. Essa edição tem a tradução sensível de Ferreira Gullar e a ilustração singular de Isidro Ferrer, artista plástico espanhol. Nem sei se a palavra certa para descrever o trabalho de Ferrer é ilustração. São mais bem cenários surreais, feitos com colagens, fotografias, instalações em madeira e uma linguagem própria. Não ilustra propriamente o texto, mas o incorpora e o transforma em outra forma de questionar o mundo.
Há inúmeras teses que tentam explicar o que fez Neruda elaborar mais de 200 perguntas. Uns dizem que foi a forma que ele encontrou para expressar a admiração no encontro de dois “eus”: o do menino curioso com as descobertas e do adulto versado. Outros falam do poeta que elabora suas inspirações mais primitivas, anteriores até mesmo à própria infância. Há quem acentue a influência da filosofia oriental. O “Livro de Jó” também parece modelo.
Eu vejo o livro como resultado de tudo isso, e de mais alguma coisa. Leio ali a inquietude que deve cercar as pessoas sensíveis quando a morte se avizinha. Leio um sopro de nostalgia da ignorância e um tanto de prazer em se alcançar a lucidez. São perguntas sobre vida, morte, natureza, homem – temas que cercam qualquer mortal, mais ainda os que, como Neruda, exercitam os sentidos da alma.
No Chile, algumas edições introduziram respostas dadas por crianças. Ao que parece, até uma emissora de rádio fez uma campanha para eleger as melhores frases. Eu realmente dispenso essa sede de solução. Não me faz falta. Sério. Gosto de ler as perguntas sem necessariamente imaginar respostas, dando ainda mais asas à incerteza. O mundo já é tão racional, o que custar imaginar que algumas coisas simplesmente não se explicam, não se respondem?
p.s.: Quem me deu esse presente foi uma dupla incrível, que redescobri recentemente. Digo redescobri porque conheço os dois faz algum tempo, mas só esse ano a coisa pegou, digamos assim. Falo da Nina e do André. Ela é uma fofa que exala amor. Dou um doce para quem não se apaixonar pela Nina. E ele sabe tanto como levantar meu astral! Sorte poder conviver com essa dupla, todos os dias.
RECORTES
“Que coisa irrita os vulcões que cospem fogo, frio e fúria?
“As lágrimas que não choramos esperam em pequenos lagos?
Ou serão rios invisíveis que correm para a tristeza? ” (pag. VIII)
“É ruim viver sem inferno: não podemos reconstruí-lo?
E colocar o triste Nixon com a bunda sobre o braseiro?
Queimando-o a fogo lento com napalm norte-americano?” (pág. XVIII)
“Não é melhor nunca que tarde?
E por que o queijo se dispôs a realizar proezas na França?” (pág. XX)
“Amor, amor, aquele e aquela, se já não são, para onde se foram?
Ontem, ontem, disse a meus olhos, quando voltaremos a ver-nos?” (pág. XXII)
“É verdade que a tristeza é larga e estreita a melancolia?” (pág. XXIX)
Enfim, voltando ao presente, “Livro das Perguntas” foi um dos primeiros lançamentos póstumos do poeta chileno, escrito em seu último ano de vida e publicado pela primeira vez em 1974. Essa edição tem a tradução sensível de Ferreira Gullar e a ilustração singular de Isidro Ferrer, artista plástico espanhol. Nem sei se a palavra certa para descrever o trabalho de Ferrer é ilustração. São mais bem cenários surreais, feitos com colagens, fotografias, instalações em madeira e uma linguagem própria. Não ilustra propriamente o texto, mas o incorpora e o transforma em outra forma de questionar o mundo.
Há inúmeras teses que tentam explicar o que fez Neruda elaborar mais de 200 perguntas. Uns dizem que foi a forma que ele encontrou para expressar a admiração no encontro de dois “eus”: o do menino curioso com as descobertas e do adulto versado. Outros falam do poeta que elabora suas inspirações mais primitivas, anteriores até mesmo à própria infância. Há quem acentue a influência da filosofia oriental. O “Livro de Jó” também parece modelo.
Eu vejo o livro como resultado de tudo isso, e de mais alguma coisa. Leio ali a inquietude que deve cercar as pessoas sensíveis quando a morte se avizinha. Leio um sopro de nostalgia da ignorância e um tanto de prazer em se alcançar a lucidez. São perguntas sobre vida, morte, natureza, homem – temas que cercam qualquer mortal, mais ainda os que, como Neruda, exercitam os sentidos da alma.
No Chile, algumas edições introduziram respostas dadas por crianças. Ao que parece, até uma emissora de rádio fez uma campanha para eleger as melhores frases. Eu realmente dispenso essa sede de solução. Não me faz falta. Sério. Gosto de ler as perguntas sem necessariamente imaginar respostas, dando ainda mais asas à incerteza. O mundo já é tão racional, o que custar imaginar que algumas coisas simplesmente não se explicam, não se respondem?
p.s.: Quem me deu esse presente foi uma dupla incrível, que redescobri recentemente. Digo redescobri porque conheço os dois faz algum tempo, mas só esse ano a coisa pegou, digamos assim. Falo da Nina e do André. Ela é uma fofa que exala amor. Dou um doce para quem não se apaixonar pela Nina. E ele sabe tanto como levantar meu astral! Sorte poder conviver com essa dupla, todos os dias.
RECORTES
“Que coisa irrita os vulcões que cospem fogo, frio e fúria?
“As lágrimas que não choramos esperam em pequenos lagos?
Ou serão rios invisíveis que correm para a tristeza? ” (pag. VIII)
“É ruim viver sem inferno: não podemos reconstruí-lo?
E colocar o triste Nixon com a bunda sobre o braseiro?
Queimando-o a fogo lento com napalm norte-americano?” (pág. XVIII)
“Não é melhor nunca que tarde?
E por que o queijo se dispôs a realizar proezas na França?” (pág. XX)
“Amor, amor, aquele e aquela, se já não são, para onde se foram?
Ontem, ontem, disse a meus olhos, quando voltaremos a ver-nos?” (pág. XXII)
“É verdade que a tristeza é larga e estreita a melancolia?” (pág. XXIX)
sexta-feira, 13 de junho de 2008
Da engrenagem ao cosmo

Pela lógica, esse deveria ter sido o post de estréia do blog. E a razão é muito simples: é o principal livro da minha vida nos últimos dois anos e meio. Foi sobre ele que me debrucei esse tempo todo, buscando relações, estabelecendo caminhos e parâmetros que me levassem à dissertação de mestrado que defendi no começo de maio, na PUC–SP. (Quem tiver interesse e paciência, ela está disponível na biblioteca da Monte Alegre e logo nos arquivos virtuais da Capes com o título: “A borboleta azul na parede de vidro: o imaginário medieval em Nove, Novena, de Osman Lins”.)
Se não me atrevi antes a escrever uma resumida crítica de “Nove, novena” (São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 211 páginas) é porque não me via capaz de fazê-lo em poucas linhas. Mas tentarei. E para ser o mais objetiva possível, assumo o superlativo sem culpa: esse é um dos melhores livros que já li na vida, mesmo.
“Nove, novena” reúne nove narrativas curtas (o próprio autor renega a classificação de contos) que têm como núcleo de abordagem a reconstrução da ligação do homem moderno ao cosmo. Cabeçudo demais? Nem tanto. O livro está ambientado (foi escrito na primeira metade dos anos 1970 e lançado em 1975) num país que assimilava a expansão desenfreada das grandes cidades, o advento da produção em massa e a promoção da indústria cultural norte-americana. Nesse meio, o homem osmaniano parece espremido, em busca do seu próprio espaço.
É das angústias do ser moderno que trata os textos de Osman Lins. Desse homem, como explica Benjamin, dividido entre “a esperança de retorno às certezas desaparecidas e o medo do futuro impessoal e fragmentado”. Mais ou menos como eu me sinto e talvez você que me lê também: paralisado entre a saudade do que não existe e a esperança nebulosa pelo que está por vir.
A genialidade do autor (pernambucano!) está na forma com que constrói o texto, trazendo alegorias tão incríveis que a gente lê e se pergunta: por que mesmo não pensei nisso antes?
Numa das narrativas que mais gosto, chamada “Noivado”, um casal de velhos noivos trava o último diálogo antes de pôr fim a uma relação acomodada que perdura há 28 anos. Mendonça é um burocrata recém-aposentado que, dias antes de deixar a repartição, se depara com o primeiro problema “mais ou menos vivo” em 30 anos de carreira: uma invasão de insetos, que vêm não se sabe de onde e rompem a vidraça do prédio. Giselda é a velha que guarda o romantismo da juventude e a esperança de que o rompimento do noivado signifique, enfim, seu resgate.
Enquanto os dois personagens se contrastam em seus dilemas, os diálogos se distanciam até que um diante do outro sequer se enxergam. Enquanto Mendonça se inquieta com seu fracasso diante do mundo real e orgânico dos insetos, Giselda acredita testemunhar a transformação do noivo em máquina, como se o corpo, enfim, assumisse a forma de engrenagem – a mesma que o fez repetir gestos e palavras por três décadas de atividade medíocre.
Com uma construção alegórica riquíssima e extrapolando a linguagem verbal (as falas das personagens são identificadas por símbolos gráficos), Osman Lins “desconcretiza” o real. Tudo está desfeito e desconfigurado. É a linguagem analógica empenhada em oferecer conhecimento sensorial da realidade. O objetivo não é a verdade, mas sim o conhecimento de mais uma (entre as tantas possíveis) possibilidade do real.
p.s.: o empurrãozinho que faltava para eu escrever esse resuminho de “Noivado” me foi dado pela queridíssima Micheliny, que comentou no post anterior que escreve no momento um artigo sobre Osman Lins. Foi ela quem o apelidou, muito propriamente, de deus. Alguém duvida?
Recortes:
“8 Duas aranhas saem da boca de Mendonça, descem pelo ombro, saltam para o chão, um grilo põe-se a cantar. Mariposas giram em torno da lâmpada. Pela janela aberta entra zumbindo uma nuvem de mosquitos. Na veneziana fechada aparece uma lagarta, gafanhotos pousam no sofá e na moldura do espelho. Na face exterior da vidraça vejo um louva-a-deus olhando-nos. Três besouros enormes irrompem zumbidores. Formigas vermelhas passam por baixo da porta, seguem em fila cerrada na direção do meu quarto. Enorme borboleta azul adeja sobre nós. Sinto na perna esquerda o rastro de uma centopéia.” (pag. 168)
Se não me atrevi antes a escrever uma resumida crítica de “Nove, novena” (São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 211 páginas) é porque não me via capaz de fazê-lo em poucas linhas. Mas tentarei. E para ser o mais objetiva possível, assumo o superlativo sem culpa: esse é um dos melhores livros que já li na vida, mesmo.
“Nove, novena” reúne nove narrativas curtas (o próprio autor renega a classificação de contos) que têm como núcleo de abordagem a reconstrução da ligação do homem moderno ao cosmo. Cabeçudo demais? Nem tanto. O livro está ambientado (foi escrito na primeira metade dos anos 1970 e lançado em 1975) num país que assimilava a expansão desenfreada das grandes cidades, o advento da produção em massa e a promoção da indústria cultural norte-americana. Nesse meio, o homem osmaniano parece espremido, em busca do seu próprio espaço.
É das angústias do ser moderno que trata os textos de Osman Lins. Desse homem, como explica Benjamin, dividido entre “a esperança de retorno às certezas desaparecidas e o medo do futuro impessoal e fragmentado”. Mais ou menos como eu me sinto e talvez você que me lê também: paralisado entre a saudade do que não existe e a esperança nebulosa pelo que está por vir.
A genialidade do autor (pernambucano!) está na forma com que constrói o texto, trazendo alegorias tão incríveis que a gente lê e se pergunta: por que mesmo não pensei nisso antes?
Numa das narrativas que mais gosto, chamada “Noivado”, um casal de velhos noivos trava o último diálogo antes de pôr fim a uma relação acomodada que perdura há 28 anos. Mendonça é um burocrata recém-aposentado que, dias antes de deixar a repartição, se depara com o primeiro problema “mais ou menos vivo” em 30 anos de carreira: uma invasão de insetos, que vêm não se sabe de onde e rompem a vidraça do prédio. Giselda é a velha que guarda o romantismo da juventude e a esperança de que o rompimento do noivado signifique, enfim, seu resgate.
Enquanto os dois personagens se contrastam em seus dilemas, os diálogos se distanciam até que um diante do outro sequer se enxergam. Enquanto Mendonça se inquieta com seu fracasso diante do mundo real e orgânico dos insetos, Giselda acredita testemunhar a transformação do noivo em máquina, como se o corpo, enfim, assumisse a forma de engrenagem – a mesma que o fez repetir gestos e palavras por três décadas de atividade medíocre.
Com uma construção alegórica riquíssima e extrapolando a linguagem verbal (as falas das personagens são identificadas por símbolos gráficos), Osman Lins “desconcretiza” o real. Tudo está desfeito e desconfigurado. É a linguagem analógica empenhada em oferecer conhecimento sensorial da realidade. O objetivo não é a verdade, mas sim o conhecimento de mais uma (entre as tantas possíveis) possibilidade do real.
p.s.: o empurrãozinho que faltava para eu escrever esse resuminho de “Noivado” me foi dado pela queridíssima Micheliny, que comentou no post anterior que escreve no momento um artigo sobre Osman Lins. Foi ela quem o apelidou, muito propriamente, de deus. Alguém duvida?
Recortes:
“8 Duas aranhas saem da boca de Mendonça, descem pelo ombro, saltam para o chão, um grilo põe-se a cantar. Mariposas giram em torno da lâmpada. Pela janela aberta entra zumbindo uma nuvem de mosquitos. Na veneziana fechada aparece uma lagarta, gafanhotos pousam no sofá e na moldura do espelho. Na face exterior da vidraça vejo um louva-a-deus olhando-nos. Três besouros enormes irrompem zumbidores. Formigas vermelhas passam por baixo da porta, seguem em fila cerrada na direção do meu quarto. Enorme borboleta azul adeja sobre nós. Sinto na perna esquerda o rastro de uma centopéia.” (pag. 168)
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